Em 2016 assinalam-se os 100
anos do nascimento de um dos escritores portugueses que melhor honrou o
compromisso ético com uma cultura para todos os homens.
A distância que começamos a ter em relação
ao século XX, permite-nos traçar com maior propriedade essa ficção que é a
fronteira entre o que fomos e estamos a ser. E uma figura como Vergílio
Ferreira, que faria 100 anos no próximo dia 28, é um homem que testemunhou, e
na sua obra reflete, o arco dos acontecimentos mais marcantes, devastadores e
transformadores, que fizeram a história da segunda metade desse século. Ele
emergirá no panorama cultural português como uma presença chocante como acabam
por ser todas as que rompem com as grilhetas que um determinado bom senso impõe
- pelas circunstâncias próprias de um lugar e do momento social e político que
atravessa - à sensibilidade dos seus artistas, escritores, aos espíritos que se
afinam segundo uma melodia apenas pressentida.
O centenário de Vergílio Ferreira, segundo
tudo indica, será assinalado com grande dignidade, estando previsto um conjunto
de importantes iniciativas que se desenrolarão ao longo de 2016 e que serão
úteis para obrigar a atualidade a reapreciar e descobrir com renovado espanto a
multifacetada obra de um autor que teve um papel claramente disruptivo na
literatura portuguesa, e que viria a impô-lo como uma das figuras com maior
influência na definição não apenas do romance e do campo da ficção portuguesa,
mas ainda como um pensador que, em tudo aquilo a que se dedicou, expressou nos
seus livros as grandes inquietações que nos deixaram um dos mais ferozes
testemunhos das dores de crescimento de uma consciência portuguesa e um tanto
provinciana que começava então a ganhar mundo.
A sua obra é perpassada por um agudíssimo
sentido da falha humana, do absurdo da sua condição, mais do que um mal-estar,
o desassossego - retomando o sentimento existencial de Pessoa cuja obra é
companheira da sua na radical abertura que significou no nosso país - igualado
por um ímpeto que o colocava do lado dos que não se contentam, dos que
questionam furiosamente, convidam a crise a instalar-se no lugar das
convicções.
Mais do que meras resistências, a sua
postura fortemente crítica despertou-lhe ódios, com muitas das suas páginas a
servirem de ajustes de contas. Mas para lá de um certo fel, do desgosto e da
crescente oposição face à operação sindicalista que tomou conta do campo das
letras, em Vergílio Ferreira há a todo o momento uma razão que se predispõe
para o confronto de ideias e mesmo a polémica, afirmando-se como um dos mais
combativos escritores portugueses do seu e de qualquer outro tempo.
O seu percurso ficaria decisivamente
marcado pela rutura com o neorrealismo, tornando-se uma espécie de dissidente
daquele movimento que se impusera de forma hegemónica, numa denuncia que não
deixa de ser o tipo de obsessão de uma sociedade sujeita à opressão de um
regime ditatorial. Não se deixando cingir a uma visão do mundo alinhada com o
horizonte disponível, Vergílio Ferreira buscou o seu, deixando-se seduzir pela
aventura dos autores existencialistas franceses.
A propensão filosófica e o exercício de
indagação metafísica tornaram-se traços distintivos da escrita do autor de
“Aparição”, mas é curioso notar que esta componente parece ser o que mais
fragiliza hoje aquela parte da obra mais comprometida com esse esforço,
parecendo-nos um tanto datada na comparação com as obras de figuras cimeiras do
existencialismo francês, como Sartre ou Malraux. Por outro lado, há um lado uma
qualidade emotiva na escrita de Vergílio Ferreira, uma investigação das
sensações, dos lugares afetivos e dos humores, uma capacidade de corromper a
narrativa, impondo na prosa um fulgor poético que não acaba de nos surpreender.
Algumas iniciativas
A Quetzal vem já publicando, há um
punhado de anos, a obra completa de Vergílio Ferreira, sobretudo através de
reedições, mas também de textos inéditos, fruto da parceria com a equipa que se
encontra a trabalhar o espólio do autor, dirigida por Helder Godinho. Em 2016
esta empresa terá continuidade. Já se encontram disponíveis “O Caminho Fica
Longe” (1943), “Aparição” (1959) e “Rápida, a Sombra” (1974). Em Fevereiro
publicar-se-á “A Curva de Uma Vida” (1938) e “Promessa” (1947), obras póstumas
editadas pela primeira vez em 2011. Em formato digital, serão publicados todos
os volumes de Espaço do “Invisível” (ensaios) e de “Conta-Corrente” (diários).
A metade do ano trará a reedição de “Cântico Final” (1960) e, em formato
digital, de “Sobre o Humorismo de Eça de Queirós”, o primeiro ensaio do autor.
No final do ano publicar-se-á “Onde Tudo Foi Morrendo” (1942).
Na Biblioteca Municipal Eduardo Lourenço, na
Guarda, está patente a exposição de fotografia “A Guarda em Vergílio Ferreira”,
até 31 de Janeiro, entre outras atividades dedicadas à celebração do centenário
de Vergílio Ferreira. Gouveia também acolherá, ao longo de todo o ano, diversas
iniciativas, de que se destaca a exposição “Vergílio Ferreira - Os Caminhos da
Escrita e o Fascínio da Arte”, organizada em parceira com a Biblioteca Nacional
e que se encontrará em exibição no Museu Municipal de Arte Moderna Abel Manta,
entre 29 de Janeiro e 26 de Março. No próximo dia 30 celebrar-se-á o colóquio
“Vergílio Ferreira: Evocação, Evocações”, na Biblioteca Municipal de Gouveia.
Ainda em Gouveia, e também na Faculdade de Letras da Universidade do Porto,
decorrerá, entre os dias 19 e 21 de Maio, o colóquio internacional “Vergílio
Ferreira e o Apelo Invencível da Arte de Pensar”.
No Centro Cultural de Belém, em Lisboa, terá
início em Fevereiro o ciclo “Vergílio Ferreira e Mário Dionísio: Literatura,
pensamento e arte”, coordenado por Maria Alzira Seixo. Já a Universidade de
Évora, entre 29 de Fevereiro e 2 de Março, organizará o congresso internacional
“Vergílio Ferreira: entre o silêncio e a palavra total”, cuja programação
incluirá, no dia 1 de Março, a cerimónia de entrega do Prémio Vergílio Ferreira
2016 ao escritor açoriano João de Melo.
Texto retirado de IONLINE.PT, de 22 de Janeiro de 2016
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